Se as práticas e as técnicas políticas ligadas à «razão de Estado» configuram suspensões efetivas – limitadas, embora, no tempo – dos procedimentos normais do «Estado de direito», em que condições, sob que circunstâncias, com que justificações e em que termos, podemos hoje admitir uma legitimidade autónoma do poder político face ao direito e à justiça? Qual, afinal, o conteúdo político que cifra o conceito hodierno de «razão de Estado»? Haverá ainda razões objetivas (quais?) que permitam distinguir a «boa» e «verdadeira» da «má» e «falsa» «razão de Estado»? E que tipo de «racionalidade» se tem hoje em mente quando se invoca a «razão de Estado»? Quando o conjunto do aparelho de Estado e as instituições políticas contemporâneas caem nas mãos de castas partidárias, quando frequentemente se vêem substituídas nas suas funções pela demagogia populista dos media, o que se pode esperar da invocação da «razão de Estado» senão uma flagrante e insidiosa substituição do interesse público pelo interesse privado – definição propriamente política de corrupção? Onde quer que os servidores públicos do Estado se transformem em donos privados do Estado, contrariando o nexo democrático entre o princípio de representação e a publicidade do poder, intervém uma «razão de Estado» que já não pode ser classificada senão como «razão de Estábulo» (Baltasar Gracián).
António Bento