Em sua disputa por hegemonia, a filosofia platónica procedeu à desqualificação moral e ontológica de práticas com as quais rivalizava no mundo grego: a sofística, a retórica, a poesia e a pintura. A partir de então, estabelecida a partilha entre o ficcional e o não-ficcional, a mimesis passou a ser inexoravelmente associada ao sedutor brilho do falso, que não deixou de exercer fascínio sobre os filósofos. Em pleno século XXI, cabe repensar esse tema, investigando as implicações dos gestos inaugurais da filosofia ocidental. Só desse modo poderemos dimensionar, com maior precisão, até que ponto somos ainda deles tributários. É nesse sentido que propomos aqui uma leitura do breve diálogo platónico Íon, no qual, de modo ardiloso, a condenação da poesia se apresenta, curiosamente, sob o manto de sua sacralização.