A mulher, escritora e ensaísta que se descobre portadora de uma clandestina doença, o cancro.
«Um ano? Quantos meses? Que tempo passou desde que o clandestino assaltou o corpo, disfarçado de coisa nenhuma, bandido vestido de nada, malandro? Realidade engarrafada, diz Agustina sobre o romance certo, sem atropelos de memória ou eclipses de pessoas. Mas esse romance não existe, o curso dos acontecimentos é por natureza desordenado, e descubro eu agora que, tal como na vida verdadeira, nós perdemo-nos na realidade ou ela perde-nos a nós. Porque toda a realidade correu depressa de mais, esquecemo-nos dos detalhes dos dias, das frases, dos pensamentos que andam a galope, a fugir de um para o outro que se segue. É o que não quero, é por isso que lembrar, recordar, registar, guardar, tem sido um traço forte meu, desde a primeira consciência de mim. Contar, dar testemunho daquilo que oiço e vejo e vivo, é importante. Muitas vezes eu guardo uma cor ou um cheiro ou uma sensação qualquer, mas o cenário desapareceu e as personagens sumiram, de vez. Essa é uma das perdas que me abala, quando acontece.»