Luís Piçarra, um dos mais populares e cosmopolitas cantores portugueses, levou uma existência acidentada, repleta de instantes de glória, mas também de adversidades. Pisou palcos de grandes salas e de teatros de ínfima ordem. Conheceu a fortuna e a privação. Senhor duma voz de ouro (orgulhava-se de ter gravado 999 canções), perdeu-a ingloriamente numa emboscada de guerra, no interior de Angola. Nunca lhe faltou, porém, sentido de humor, e uma ironia muito própria que o fazia gracejar com os próprios desaires. Português à solta pelo mundo (num tempo em que os horizontes de muitos dos seus compatriotas terminavam em Badajoz...), Piçarra tinha a perspicácia suficiente para saber que não adiantava zangar-se com a vida – por mais partidas que esta lhe pregasse. Manteve o mesmo espírito até ao fim. Com o seu porte de aristocrata decadente, lembrava uma personagem de Fellini, talvez o velho dançarino protagonista do melancólico «Ginger e Fred». Um artista veterano, lúcido e desenganado, mas que não perdera de todo o magnetismo do tempo em que fora uma vedeta de projecção internacional.