A loja ainda lá está com as suas enormes vitrinas, uma na rua da Conceição, a outra na de José Falcão. Naquele tempo, a primeira expunha objectos de antiquário, a segunda as bonecas recuperadas no seu "hospital". O senhor Andreias Fontes, o proprietário, era homem habilidoso e sábio. À porta do estabelecimento, mesmo na esquina, vinha todos os dias sentar-se, pelo braço da filha, um cego com o seu acordeão. A menina cantava e os transeuntes iam deixando cair as esmolas na caixinha aberta aos pés do concertista. Andreias Fontes lia, por essa altura, uma tradução de Rei Édipo de Sófocles, e aquele cego mais a menina faziam-lhe recordar a tragédia antiga. Também se deu conta, através do Borda d’Água, do desaparecimento de nove dias, na reforma do calendário da era de César pelo papa Gregório XIII. Introvertido, laborando distraído no interior dos seus pensamentos, Andreias Fontes é atropelado ao atravessar a passadeira em frente da igreja de São-João-dos-Enforcados. Uma ambulância leva-o para as urgências de uma clínica e, em seu desmaio febril, o pobre doente desenrola, na montra das suas bonecas estropiadas, o pesadelo de Édipo e Jocasta na peça do tragediógrafo grego, interrompido a espaço pela curiosidade e considerações da sua jovem ajudante. E o leitor sente-se confuso se tudo aquilo se passa na praça de Londres, em Lisboa, ou perto do largo de Mompilher, no Porto; se o tempo é o dos Gregos ou o dos nossos dias; se, afinal, a um dia catorze de outubro, domingo, pode seguir-se um dia quinze, sexta-feira...