«Envelheço. Morro, em cada dia definho um pouco mais. Metido entre estas paredes de gritos, rebusco um passado que não percebo, que não domino, um passado que me escapa por entre os dedos, anos e anos de hiatos, será que vivi, será que algum dia me senti vivo ao ponto de querer bater com a porta no ontem e de olhá-lo de soslaio e com desprezo? As muletas pesam cada vez mais, as muletas que me rebocam generosamente de uma tristeza a outra, eu, o homem das quatro pernas, o aleijado que afia os cornos na ombreira da porta do quarto onde a tua mãe se escarrapacha com os pretos, eu a olhar pela fechadura, agarrado às muletas, por vezes tropeço e bato com a cabeça na porta, a tua mãe ri e grita mais alto e o preto entusiasma-se, mete a quinta no vaivém frenético e eu lembro-me de que não sou homem, de que sou um bicho assexuado e não consigo deixar de espreitar, a tua mãe a rugir e eu com o olho cravado na fechadura, o mesmo olho que vê e que não vê, o mesmo olho de que jorram galões de água do mar com que desesperadamente tento lavar os remorsos.»