Neste continente, e com gente civilizada de um século XX quase a meio, houve campos de concentração. Berlim sonhava uma Europa ariana e de supremacia germânica num espaço geográfico onde viviam nove milhões de judeus, todos a mais. Em 1903, quando Irma Irina nasceu em Kiev, a família Nemirowsky (com um nome forte na alta finança do país) falava sobretudo francês. O seu pai Leonid chamava-lhe ma petite, dava-lhe a companhia e as lições de uma preceptora francesa, e nas histórias da sua infância a Gata Borralheira apareceu-lhe como Cendrillon, e a Capuchinho Vermelho como Petit Chaperon Rouge. No romance David Golder o judeu sabe que deve sempre «recomeçar» e muitas vezes terá, talvez, de fazê-lo. Leonid estava a «recomeçar», e poucos anos mais tarde voltaria a ser um abastado banqueiro; passaria a ser monsieur Léon, a sua mulher Anna passaria a ser madame Fanny, e Irma Irina, claro está, mademoiselle Irene; continuavam a comunicar uns com os outros em francês, como já antes faziam, mas agora no país certo; e adquiriam os costumes e os comportamentos da alta burguesia de Paris. Irene frequentava a Sorbonne num curso de letras, e uma conceituada escola de dança.
No dia 17 de Julho de 1942, Irene Nemirowsky [1903-1942] estava entre os 928 judeus metidos em vagões para transporte de gado, com palha no chão e um balde com água, num comboio que durante três dias e duas noites atravessou a França, a Alemanha e a Polónia até Auschwitz. Chegadas ao destino, as mulheres foram separadas dos homens, entregaram jóias e alianças de casamento, foram rapadas, tomaram um banho de chuveiro com água fria e vestiram batas às riscas. No dia seguinte tiveram um número tatuado no pulso. Irene Nemirowsky só viveu trinta dias em Auschwitz; não chegou a esqueleto vivo nem à câmara de gás; morreu, atingida pela epidemia de tifo que nesse momento matava piedosamente os residentes do campo. A.F