"Candeeiros a gás iluminam as artérias do coração de Lisboa. Os dias de chuva trazem o lamaçal, os dias de vento carregam as poeiras. E pelas noites gatunos encarapuçados aliviam as suas vítimas do peso da carteira, ou da vida. É também de noite que mais se ouve o ladrar de centenas de animais proclamando alto e bom som o seu estatuto de cães vadios.
É assim o Chiado, quando os ponteiros do tempo se quedam por estes meados do século XIX. Garantem os cronistas, o local é ainda, como foi nos séculos anteriores, a mais popular, concorrida e elegante zona da capital. Elegante, mesmo que a palavra pareça desajustada numa época em que faltam as infra-estruturas que dão qualidade à vida. Porque neste ano de 1850, apesar da ausência de electricidade, da falta de saneamento básico, da lentidão dos transportes e do mau estado das ruas, há quem cultive as boas maneiras, cuide do físico e da farpela. Talvez porque o espartilho, como o chapéu ou a bengala com castão de prata, já foram inventados e ainda não se fez luz na cabeça do senhor Edison.
Podem amanhã os homens das ciências criar o computador, seja IBM ou Macintosh, e fazê-lo entrar no rol das coisas indispensáveis. Mas hoje, entre as muitas coisas que se não dispensam, e dão qualidade à vida, pontificam a elegância da pena de pato e a dinâmica do aparo. Parece estar escrito que a partir desta segunda metade do século XIX, e pelos anos fora, ninguém resistirá à atracção do Chiado, com os seus palacetes, hotéis, livrarias, pastelarias, cafés, armazéns, lojas de moda. Do visconde ao mendigo-filósofo, das costureirinhas aos funcionários públicos, dos escritores aos políticos, dos remediados aos mais abastados, todos farão o mesmo percurso: é vê-los subir do Terreiro do Paço, demandarem o Largo das Duas Igrejas e disputarem o prazer de uns momentos à esquina da Casa Havaneza."