Entre o estadão e as teias neofeudais do micro-autoritarismo
Um «diário» composto por reflexões de um autor e professor universitário que sempre recusou conformismos e cobardias, não temendo apontar o dedo e chamar as coisas pelos nomes. Ao estilo de As Farpas, de Ramalho Ortigão e Eça de Queirós, são apontados, nomeados e contextualizados os «podres» da nação, não se poupando nenhuma classe nem nenhum interesse instituído.
Alguns excertos:
«Uma nova geometria social
O problema está menos na soma contabilística de forças eleitorais, ou na mera aritmética parlamentar, e mais na falta de geometria, da qualitativa, quanto ao redesenho da mobilização pelo bem comum, com a consequente transformação dos dispersos poderes em autoridade, a que gera confiança pública. Lê, aproveita, vê e imita o que é bom, reflecte e trabalha; faze quanto possas para o aproveitamento da organização social, e assim, contribuirás para o bem colectivo (2009).
Actores que não são autores
Muitos políticos que nos dominam apenas pretendem conquistar o poder, esquecendo-se de que o mesmo tem de assentar na autoridade. São simples actores que não conseguem ser autores, meras criaturas que não são criadores, obedecendo aos guionistas, contratados pelos donos dos bastidores. Pretendem reduzir-nos à unidimensionalidade de auditores, com uma cidadania passiva, sujeita ao rolo compressor do statu quo e da respectiva ditadura da incompetência (2008).
Falta de Europa
O que tem falhado é uma Europa activa, supranacional e supra-estatal, e não esta colectânea de falhadas cimeiras que não conseguem acompanhar o desafio lançado pelo neo-isolacionismo em que podem cair as medidas proteccionistas dos norte-americanos. O que não existe é uma efectiva Organização Mundial de Comércio e reais regras universais de direito cosmopolítico, para que um político global controle o poder desalmado do económico e do financeiro, a que chamam mercados (2009).
Perda de soberania
O Estado a que chegámos, ao fragmentar-se em vários estadinhos, tornando-se no gigantone do estadão, perdeu soberania no plano externo e deixou esvair, no plano interno, a vontade de sermos independentes (Alexandre Herculano), até porque, com o crescendo do indiferentismo e da corrupção, se fragmentou por vários Estados dentro do Estado. É honesto reconhecermos que todos temos telhados de vidro. Não é desonesto exigirmos que os bons exemplos venham de cima, nestas malhas que o mostrengo tece (2011).
Moralização da política
A pior das crises políticas é aquela onde nem sequer é possível uma consensualização quanto às próprias causas da situação, pelo que pode ter de tomar-se um remédio que alivia a dor, mas mantém a epidemia. Também no último quartel do século XIX nos enrodilhámos em decadência e a crise levou décadas, infestando a República. Todos os sinais que nos chegam apontam para que se mantenha esta anarquia mansa e apenas se dê nova forma à permanente ditadura da incompetência. E isto porque não assumimos a necessidade de uma efectiva moralização da política (2005).
Memória e valores
Um povo é uma comunidade de significações partilhadas (Karl Deutsch) e uma pátria, uma comunhão em torno das coisas que se amam (Santo Agostinho), tal como a autonomia é a soma da memória com os valores. Daí que o verdadeiro poder político seja um complexo de práticas materiais e simbólicas destinadas à produção do consenso (Max Weber) (2006).
Apodrecimento dos regimes
Há regimes políticos que, apesar de nascerem de bons e justos propósitos construtivistas, quando a degenerescência os faz cair nas teias do devorismo e da empregomania, apodrecem por dentro e apenas tentam sobreviver, gerindo a manutenção no poder através da erosão situacionista daquele rotativismo, onde se vai fingindo mudar para que tudo fique na mesma (2005).
Entre a cunha e a corrupção
Entre a cunha e a compra de poder, vive-se neste ambiente de relações privadas que afectam o próprio financiamento partidário. Não tarda que surjam as sereias do pretenso moralismo populista, enquanto vão proliferando os episódios ditos da judicialização da política e as ameaças do Estado de Juízes, simples manobras de diversão que nos embaciam as lentes analíticas (2007).
Regressão
De vez em quando, reparamos que, se não houver boa cultura e boa educação, a sociedade humana pode regredir, voltando ao nível de continuidade das sociedades animais. Porque, em ambas, existem animais agressivos, marcados por organizações hierárquicas e onde até se distinguem nitidamente os papéis reservados para o masculino e o feminino (2006).
Desespero e indiferentismo
Como a maioria dos factores de poder não é nacional, há que nacionalizar esse bem escasso chamado política, através do habitual recurso dos tempos de crise que é a vontade de sermos independentes (Alexandre Herculano) e de, através, da cidadania, evitarmos que a democracia se transforme em democratura, como ameaçam os neofeudalismos do desespero reinante e do crescimento do indiferentismo (2008).
Confiança
O principal da crise tem a ver com a falta de políticos de confiança, desses que podem ser capazes de encher a democracia de povo, tanto o que anda em protestos nas ruas, como o que está silencioso no recato do lar ou vai, apesar de tudo, conversando face to face, com os vizinhos, palavra que vem de vicus, aldeia, e que não pode continuar a ser traduzida por pagus, quando o discurso oficial e oficioso passou a chamar pagão ao aldeão que resiste ao rolo unidimensionalizador. (2008).
Servidor público
Portugal precisa de um novo paradigma de servidor público, de um novo modelo de bom deputado, de um novo conceito de ministro de Estado, mas com menos soberba de intelectuário e mais verdade. Infelizmente, conheço várias instituições onde patifes controlam o sistema, criando uma sociedade de corte que mobiliza todos os oportunistas que circulam nos interstícios da golpada. Costumo designar o esquema pela categoria de microautoritarismos subestatais, onde a iluminação é pouca e o despotismo, banal (2012).
Entre o público e o privado
Entre o público e o privado, domina o tertium genus, do lobismo das empresas de regime e companhias majestáticas, bem como os gestionários do outsourcing que privatizam clandestinamente o público, isto é, os parasitas que nos vermizam e ainda fazem os discursos de justificação de poder (2012).
Sector misto
São os do sector misto, da mistificação, os que levam quem faliu os privados para nomeações públicas, para que os privados recrutem os melhores do sector público, desesperados por tanta falta de qualidadedo neofeudalismo que destrói a coisa pública. E assim ficámos sem produtores, só grossistas, bancários, hedonismo de casino, delegados de propaganda política e caixeiros-viajantes, com saudades do pai tirano (2012).
Regresso do feudal
Há o privado, o público e o tertium genus. Um privado pode exercer uma função pública e também pode haver privatizações clandestinas do público. Em tempos de regresso do feudal, convém distinguirmos a legitimidade do título e a legitimidade do exercício, ou a diferença que vai do ter ao ser (2012).»